Fui alertado para o conteúdo de um site criacionista que fala de um texto de minha autoria, publicado em 1987 e reeditado pela última vez em 1993. Trata-se do livro O que é Darwinismo, da Editora Brasiliense. Alguns trechos foram transcritos fora de contexto, inclusive editando meu próprio currículo à época, dando a impressão de ser escrito recente.
No site, os criacionistas procuram convencer o leitor de que eu teria sido "contra a evolução" e que recentemente teria "virado a casaca", "abjurando" tudo quanto escrevera. Questionam a razão de eu não ter inserido o livro em meu CV Lattes e até mesmo a própria grafia de meu nome na capa externa (que consta como Nelio Marco).
Quero dizer que esconder o CV de quem escreveu um livro [aparece recortada a parte que diz ser o autor professor da educação básica] não é procedimento honesto e ético. Não situar no tempo e no contexto um escrito não é procedimento razoável, sendo inclusive hermeneuticamente incorreto. O livro foi escrito por um professsor de biologia do ensino médio e de cursinhos, indignado com a distância entre o que se ensinava sobre o darwinismo e o que estava escrito nas obras originais de Darwin. Ele não podia falar abertamente o que pensava pois isso iria contra o que os vestibulares exigiam.
A leitura do livro em boa fé mostra exatamente isso: a versão escolar e ahistórica do darwinismo dos livros didáticos estava sendo questionada. Classifiquei a versão escolar de "história darwinista do darwinismo". E minha linha teórica era clara: adotei a perspectiva marxista de análise, baseada nos escritos originais de Marx e Engels, mas também de Marcel Prenant e até mesmo de Kropotkin, todos devidamente citados. Se esta é mesmo a linha dos criacionistas de 2010, muito me admira. Não poderia imaginar que pessoas que se alinham com o fundamentalismo protestante estejam agora concordando com frases como "a sociedade do futuro, a sociedade socialista".
O fato é que a versão mais difundida da época alinhava o darwinismo com a sociedade competitiva capitalista e o lamarckismo com Lyssenko e o socialismo. Se transmitia a ideia de que o enfrentamento entre Darwin e Lamarck continha a essência da oposição entre os modos capitalista e socialista de produção. Essa versão, nitidamente ideológica, reapareceu claramente no livro de Dawkins, "The Blind Watchmaker", publicado poucos anos depois. O livro analisava justamente as relações no espaço da produção e na circulação de valores dominantes, tendo por base o conceito marxista de ideologia, como estratégia de apresentar os valores da classe dominante como "naturais" e não como um processo histórico. E o livro chegava ao nazismo, mostrando a que ponto essa espiral lógica acabou chegando.
Qualquer pessoa que tenha uma ideia do tempo que leva para escrever e publicar um livro, mesmo pequeno, em especial nos idos de 1980, utilizando máquina de escrever em laudas de 20 linhas com 70 toques (!!!), pode ter uma ideia de quando o livro começou a ser escrito, ou seja, bem antes de 1987. Eu só me tornei professor universitário depois de um difícil concurso no ano seguinte, e só então pude me aprofundar nos estudos sobre darwinismo. Isso incluiu uma viagem de estudos, quando então me tornei estudante de doutorado da Universidade de Liverpool, a qual cuidou de me credenciar junto à Universidade de Cambridge para que eu, então estudante de doutorado "overseas" (como eles nos chamam lá), pudesse ter acesso a fontes bibliográficas prmárias e secundárias, incluindo os manuscritos e a biblioteca pessoal de Darwin. Obviamente isso trouxe muitos elementos adicionais para minha análise.
No prefácio da terceira edição do livro (de 1993) eu explicava esse movimento e dava conta de seus resultados. Algums coisas tinham se confirmado, outras não. Escrevi que, por pura ignorância da obra de Robert Maxwell Young, eu tinha simplesmente repetido algumas de suas análises. Mas tinha feito uma tese de doutorado e passava a publicar sob o crivo acadêmico meus resultados de história da biologia, por exemplo no Jornal of the History of Biology e Journal of Research in Science Teaching (inclusive no número especial sobre ensino de evolução, de 1994). O livro da Brasiliense não era um trabalho acadêmico, pois a própria coleção não tinha essa proposta. Ele foi discutido com Eugenio Bucci, então editor da Coleção Primeiros Passos, e com o saudoso Caio Graco Prado. Afinal, era muito mais um livro de sociologia da ciência do que de biologia. E tínhamos uma ditadura a derrubar... Caio me alertava: "os livros não mudam a sociedade, mudam as pessoas; elas é que mudam a sociedade". Era disso que se falava na primeira metade daquela década, no Brasil, na Polônia...
É interessante que um dos capítulos de minha tese de doutorado, também publicada como artigo em revista indexada e que consta de meu Lattes, versava justamente sobre o mito darwiniamo em que Dawkins insistia. Emblematicamente, o capítulo recebeu o nome de "O relógio de Dawkins não adianta", muito menos criativo do que uma das recentes (2008) conferências de Terry Eagleton: "A fé em Richard Dawkins é necessária para a salvação?".
A relação entre o darwinismo e o nazismo (e os eugenistas brasileiros do mesmo período) eu explorei explicitamente em minha tese de Livre-Docência (de 1994), que foi escrutinada pelos professores Bernardo Beiguelman e Oswaldo Frota-Pessoa, para citar apenas dois dos cinco examinadores, que dispensam apresentações e dizem algo do tipo de debate que pretendi estabelecer com a comunidade científica. Minha tese de Livre-Docência consta SIM de meu CV Lattes e ela é outra parte da resposta àqueles que querem agora me inquirir, 16 anos depois de tê-la defendido publicamente, e tê-la publicado (de maneira fragmentada, reconheço) em revistas do tipo Cadernos de Pesquisa da FCC e Ciência Hoje.
Pinçar trechos de um texto, iluminá-lo de certa forma muito parcial, pode ser apenas demonstração de simples impostura intelectual. Se quiserem saber o que escrevi, leiam o que publiquei depois de 1985, inclusive um artigo recente sobre análises marxistas de Darwin (que consta de meu CV Lattes).
Sobre a grafia de meu nome e de não ter colocado todas as minhas publicações no CV Lattes, eu me reservo o direito de não responder, dada a impertinência do questionamento. Acho que o produtivismo científico que graça em órgãos (mesmo sérios) de fomento à pesquisa e de avaliação da pós graduação fala por si só, e demonstra que minha postura atual deriva daquilo que pensava antes de ser professor universitário, e não é de pura conveniência.
Fiquei indignado com o que li. Verdadeira impostura intelectual. E estou contente por perceber que minha capacidade de indignação não arrefeceu nesses 26 anos. Hoje, vejo com muito prazer a mudança dos vestibulares e o respeito aos escritos originais, em contexto. E isso ocorre ao mesmo tempo em que o governador do Kentucky decide construir uma arca de Noé para visitação turística... Vamos ver se bóia! (ainda não sei se os animais serão reais ou de plástico, e se o princípio da geração espontânea vai ser evocado para dar conta dos tantos milhões de espécies de poríferos, cnidários, vermes de todos os tipos, moluscos, artópodes etc).
Aos criacionistas "pseudomarxistas", como os teria chamado um dos heróis de muitos deles 24 anos atrás, eu digo apenas uma coisa: "Coerência, senhores, coerência por favor!". Sem demérito aos sebos (dos quais são fã), peço que entrem em uma biblioteca universitária pelo menos uma vez por ano! O mundo não se resume a sebos e internet... Visitem o Kentucky e continuem lendo literalmente os textos que quiserem, mas não iludam o leitor. Um livro não se resume a uma frase.
E, ademais, as coisas mudam. As espécies evoluem e as pessoas aprendem coisas em 26 anos. Adotar diferentes perspectivas teóricas de análise não significa "abjurar" nada. Nunca pretendi escrever textos sacros, que devessem ser lidos sem reflexão e crítica. E acho que Robert M. Young teve uma contribuição muito interessante nos anos 1980, assim como Marcel Prenant nos anos 1940, mas isso não significa que devamos ficar estacionados neles.